Mundo Ovo de Eli Heil

Eli Heil Eli Heil começou a pintar e a desenhar em 1962, após uma longa enfermidade que a obrigou a guardar à cama durante mais de cinco anos. Seu inseparável irmão, Rubens Diniz, lhe havia presenteado com um quadro pintado por um artista amigo. Eli, que jamais havia visto uma pintura em sua vida, responde num impulso incontrolável: “Mas isto eu também faço!”.

Daí seus primeiros “vômitos de criações”, como ela mesma caracteriza seu trabalho de artista, que a faz escrever: “(...) O processo criativo e a técnica despejam-se de dentro de mim, como fios coloridos, prontos para serem executados. Não me interessa se estava certo ou errado, simplesmente vomitava (criações). Não parava mais, a ponto de ter visões...”.

Eli executa, então, uma série de paisagens imaginárias dos morros e casas de Florianópolis, onde a exuberância da cor nos faz pensar nos artistas expressionistas alemães dos grupos Blaue Reiter ou Die Brucke. Não se adaptando ao pincel, por encontrá-lo macio demais, ela inventa uma técnica toda pessoal. Por meio de um perfurador de couro, tal qual uma agulha para bordar, a artista se serve diretamente do tubo, espalhando a tinta nas diferentes zonas do quadro, aplicando-a cuidadosamente, representando figuras humanas e animais em meio a uma paisagem movimentada e futurista.

E, desde então, não pára; inventando e explorando novas técnicas, em autodidata, que ela se orgulha de dizer que foram mais de 160 de sua própria invenção, como o trabalho de escultura em argila, os volumes em pano pintado almofadados, as esculturas monumentais em cimento colorido, a recuperação de garrafas de plástico de diversas cores, que ela derrete em seu fogão de cozinha, transformando-as em bichos ou estranha flora. Eli trabalha em estado de transe permanente, com a consciência de ser uma “animadora”, que dá vida e alma aos seres que pedem urgentemente para nascer (ou renascer).

Daí sua expressão de estar “grávida de monstrinhos”. O ovo, como símbolo de vida, cresce em seu ventre até a eclosão. E surge, com máxima urgência, “O Mundo Ovo”, que não pode parar. Primeiro em estado lento de gestação, depois o parto doloroso que a faz sofrer tanto, mas ao mesmo tempo lhe traz tanta alegria, por ser um parto colorido, com as cores do arco íris...

A espiral, em linha turbilhonante, em interminável ascensão, é presente em seu trabalho de maneira obsessiva. Suas criações são inúmeras. Os “vômitos criativos” abundam, invadindo seu espaço vital, o que a faz escrever: “...como sonhar com a terra (...)/ Vendo o meu mundo no ar,/ Sobrevoando o espaço,/ Como se eu fosse um palhaço,/ Pedindo um circo para ficar?”.

É o grito que a artista lança; o apelo urgente de um lugar, uma casa, um abrigo, para proteger seus “monstrinhos”, suas criações ameaçadas pela voracidade dos cupins, a danificação ocasionada pela umidade, o frio, o calor excessivo de nossos trópicos. E, como num milagre, que só no mundo mágico de Eli poderia acontecer, a artista adquire um terreno no bairro Santo Antônio de Lisboa, para construir casas que serão o lar que reunirá, assim, todas essas criaturas do seu imaginário fantástico, “...esses seres contentes, aumentando cada vez mais, para mostrar que são gente...”.

(...) O divino, em Eli, é esse sentimento que não lhe abandona jamais, do dom que lhe foi outorgado por Deus, conseqüentemente, que a faz trabalhar sem descanso, para deixar sobre a terra “...aquele fruto maduro, que muitos precisam, no momento da sede, para sobreviver...”. E o humano é a Arte, como ela afirma após o convite à Bienal de São Paulo, onde participou brilhantemente na exposição Mito e Magia: “...quero ser a mulher humilde, gerando seres e mais seres para a continuação da espécie Arte...”.

(...) Eli define a arte como um poder mágico; e para chegar onde está, ela diz ter passado pela serpente... A artista, que até então vendia com muita parcimônia suas criações, que diz, com orgulho, que não faz arte para vender, resolve realizar uma série de treze grandes painéis para por à venda e arrecadar o dinheiro necessário para a construção das casas que serão o abrigo para o seu mundo - “O Mundo Ovo de Eli Heil”, devendo ter como emblema o grande pássaro colorido - “O Anjo Pássaro”, que numa de suas visões sobrevoou o seu telhado, batendo asas e fazendo um “barulho estrondoso”.

Eli, então, compreende que o pássaro já existia em sua mente, desde 1963. Ela realiza essa obra monumental, de mais de cinco metros de altura (o pássaro pousado sobre um grande ovo), em cimento armado, tendo como ajudante “um homem simples, que apenas fazia casas”. O pássaro tinha que ser feito como um retrato fiel àquele que estava em sua mente. Após o pássaro, Eli Heil realiza duas esculturas policrônicas, em cimento armado, coloridas, de mais de três metros de altura - “Adão” e “Eva”, que simbolizam a criação de seu mundo. São personagens que recepcionam os visitantes no portal de seu museu. E, numa alegria intensa, onde “as lágrimas são coloridas”, no estribilho de um canto, Eli oferece a todos o seu coração, seus sofrimentos, suas alegrias: “O Mundo Ovo foi feito para o povo! O Mundo Ovo foi feito pra ficar!”. E ficou mesmo “O Mundo Ovo de Eli Heil”, como patrimônio da humanidade.

Cemitério de Adão e Eva Porém, algo de terrível aconteceu e Eli, tal qual a mãe que sofre a perda irreparável de seus filhos, chora inconsolável a destruição bárbara de “Adão” e “Eva”, pela segunda vez expulsos de seu paraíso terrestre, o paraíso do “Mundo Ovo” construído por Eli Heil.

Mas, felizmente, Eli não se dá por vencida. Ela possui uma força sobrenatural. Essa mulher telúrica desafia o Governo do Estado e as máquinas assassinas, que, para ganhar alguns metros de terreno para alargar a estrada de rodagem, cometem tal infâmia. Eli, esta força da natureza, continua trabalhando, incansavelmente; criando novos seres que se alinham como guardas pacíficos ao longo do jardim edênico de seu “Mundo Ovo”, para ficar.

Paris, fevereiro de 1998

Ceres Franco
Colecionadora de Arte